Rio Só de Amores
quarta-feira, 11 de maio de 2016
quarta-feira, 15 de julho de 2015
O Mistério da Serzedelo
“Bairro eclético, o nosso. Há pedintes de
todas as idades, nacionalidades e faixas sociais.”
João Antonio
in “Ô, Copacabana!”, Cosac &
Naify, 2001, pág. 35.
A bicada de fundo de
copo
“Na tarde alegre,
barulhenta e muito quente da homenagem a João Antonio, estávamos o Aguinaldo
Araújo Ramos (...) e eu, conversando fora do bar, com nossos copos praticamente
vazios nas mãos; foi quando saiu do Cevada uma mulher mais ou menos entrada em
anos, em traje de praia discretamente envolto por uma 'canga' de bom gosto,
aparentando ser de classe média, que traçou uma decidida reta em direção ao
Guina e, sem mais, perguntou a ele se poderia beber os dois dedos restantes do
chope escuro de seu copo... Ante a surpresa e hesitação do amigo, tomou-lhe o
copo das mãos, bebeu e ofereceu-se para levá-lo de volta ao interior do bar. E
foi o que fez num sentido inverso da reta inicial. Segundos depois, saiu do bar
e, numa diagonal em direção à Siqueira Campos, sumiu de nossas vistas antes
mesmo que pudéssemos esboçar um julgamento ou comentário.
Lá se ia uma autêntica
personagem de João Antonio.”
Jacy de Castro,
e-mail,
31/01/2007.
João
Antonio estava presente. Aliás, fazia aniversário, 70 anos: ah, não ia faltar
mesmo!...
“Disseram
que ele não vinha: olha ele aí!”, alguém teria cantado... É, até disseram que
tinha ido de vez, que passara (a contragosto!) dessa para uma duvidosa
melhor... Sim, porque não há nada melhor, aqui ou noutras dimensões, que umas
cervejas num boteco de esquina de Copacabana. Ele sabia (sabe!...) disso muito
bem.
Estávamos
lá, numa conversa esquisita, eu e Jacy, amigona do João, ela que há muito tempo
não via o quase compadre, um quase irmão (nunca namorado, fez questão de esclarecer...),
ela que, aliás, fingia que não, mas bem que sabia que ele estava por ali... Era
aniversário do cara, sábado à tarde, um monte de gente comemorando no Bar
Cevada, praça Serzedelo Correa, pertinho de onde morava: ah, ele tinha que
estar por ali, em algum lugar!...
Ela
contava grandes momentos dessa amizade inesperada. De saída, como ele se
convidou a experimentar o cuscuz paulista dela. O que, dito assim, pode ser mal
interpretado, mas é literal: faz lembrar o estilo dele, mais para mal humorado
e sarcástico do que para meramente irônico... E de como, depois, não a largou
mais, de vez em quando pegando umas caronas, às vezes tirando umas casquinhas,
sempre na maior camaradagem, apesar de um inexplicado sentido de urgência e
necessidade a lhe agitar.
Estacionamos
na calçada da praça em frente ao bar, eu um tanto apalermado, mais ouvindo que
falando, uma tulipa com um restinho (uns três dedos) de chope preto na mão, e a
Jacy recriando as artimanhas de João Antonio (que, concluímos, sempre teve a si
próprio como personagem, rascante e conturbado para o público, organizado e
metódico nas internas), justo quando desponta do nada, como se viesse do
Cevada, a tal figura que Jacy descreveu bem, uma mulher de certo porte e
atitude.
O
mais importante: o olhar. Portava um olhar incisivo que atravessava ruas e
pessoas, quase fura o pneu de um táxi... Pantanoso, porém, para quem pensasse
entrar nessa repentina mente. Um olhar para fora... Veio direto nos meus olhos
e mais do que pediu:
-
Posso tomar este último gole?, a mão já avançada...
Perdi,
pensei, acostumado aos novos tempos... Certo, muito justo, mas... É que perder
incomoda... Assim, sem nenhuma contrapartida?... Ah, não!...
Fui
mesquinho:
- Pode
tomar. Mas, depois... Você se incomoda de entregar o copo no balcão?...
Topou,
que há justiça em tais relações, mesmo repentinas. Tomei um gole (mínimo, não
queria que ficasse nervosa...), que quase vira vitória. Que nada: virou de
primeira os dois dedos restantes, virou-me as costas (hum, jeitosas...) e lá
foi se virar pelo balcão, que eu retornei de primeira o saudoso papo de Jacy.
![]() |
Bar de Copacabana, 1989 |
Você
viu que viu coisa diferente, não é, Jacy?... São versões, admito. A que vale é
a minha, mas, tá bom, você tem lá os seus direitos... Ora, não importa!...
Acontece que, aí, Jacy, quem perdeu foi você...
Não se incomode, é assim mesmo, faz parte do Mistério. No caso, o de Copacabana, da Serzedelo... Quem sabe disso muito bem é o próprio João Antonio, é só ler. Ah, você não chegou a ver a peça por ali, não, né?...
Não se incomode, é assim mesmo, faz parte do Mistério. No caso, o de Copacabana, da Serzedelo... Quem sabe disso muito bem é o próprio João Antonio, é só ler. Ah, você não chegou a ver a peça por ali, não, né?...
Eu
vi, Jacy, você não viu... A morena não saiu sozinha não, Jacy. E nem deu
qualquer outro bote no copo alheio... Saiu com ele, Jacy. Percebi o vulto, a
figura malemolente, o figuraça cambiante, o figurão flexível, o mistério que
foi tomando conta do braço dela, gesto meio paternal, meio possessivo, o
artista que foi logo puxando um papo ao pé do ouvido, não sei se uma cantada,
talvez uma introdução para pesquisa mais profunda, qualquer coisa que não sei
se levaria adiante na sequência dos acontecimentos...
Saíram
juntos, Jacy. Para quem olhava do ponto de vista de quem mantém no coração uma
saudade, podia parecer que ela ia sozinha, Jacy, mais uma mulher solitária em
Copacabana, são tantas... Mas eu, que ando incrédulo mas crente, Jacy, vi
(ninguém, nem eu, pode dizer que não...) com estes olhos que já viu muito mais
do que comeu.
Viu-se
(sim, alguém mais terá visto, deve haver testemunhas) que João Antonio, aquele
malandro amigo, amigo seu, amigo do povo, amigo de Copacabana, de suas figuras
felizardas e das muitas desamparadas, aquele que (eu sei que você percebeu...)
estava o tempo todo por ali, no boteco, na praça, na rua, comemorando porque nós
estávamos comemorando seus 70 anos de uma vida já um tanto imortal, ah, Jacy, a
essa altura, a essa hora, nesse tempo, fosse por conta da morena que se foi,
fosse pela vida vivida que se vai, ah, Jacy, de alguma maneira, tenho que
admitir, Jacy: João Antonio estava lá.
Mas, na verdade (você está certa, você tinha razão, Jacy!...), João Antonio não estava mais ali, aqui, no mundo.
Mas, na verdade (você está certa, você tinha razão, Jacy!...), João Antonio não estava mais ali, aqui, no mundo.
Bem...
É...
Copacabana,
Rio de Janeiro: serve?...
terça-feira, 3 de março de 2015
Rio de Março: Real Grandeza?...
Rio
de Março
Real
Grandeza?...
Ela,
já chegada aos quarenta, esguia e justa,
|
|
Ele,
passando
dos cinquenta, denso e vago,
|
entrou na Voluntários da
Pátria,
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descendo a pé
ao lado dos carros.
|
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subindo a pé
pela contramão.
|
Seu rumo era, no outro lado
de Botafogo,
|
||
a estação
do Metrô,
|
|
o largo do
Humaitá,
|
sem pensar que a solução dos
seus problemas poderia estar
no meio do caminho...
Permitia-se uma gota de
esperança. Sua crise, de tão entranhada,
já passava do ponto...
A angústia falava tão alto
que lhe tirava o sossego.
Claro, qualquer um quer paz,
nem que tenha de tirar de alguém...
Não tinha pressa. Também não
tinha maiores certezas.
Precisava perceber as
conexões, saber das mensagens ocultas.
Olhava em volta, como se
consultasse um oráculo
|
||
no hortomercado da Cobal.
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no Cine Estação
Botafogo.
|
Não queria necessariamente
consumir qualquer coisa.
Venderia mesmo um pouco de
ansiedade,
se o mercado não estivesse
tão saturado...
|
||
Sentiu o perfume das flores,
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|
Tomou um café
expresso,
|
apenas o tempo de olhar
circunstantes,
sentir a palpitação do mundo
e tentar entender as
impossibilidades reinantes à sua volta.
Reconhecia as carências, tratava-as
até com carinho...
Não adiantava reclamar
demais: guardava o apelo
escondido no peito, para
quando pudessem ajudar.
Prestou atenção ao que via:
|
||
verduras, legumes, sabores...
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|
cartazes, fotos,
atrizes...
|
Quantos são os subterfúgios
humanos?...
O que há de melhor a fazer,
além de procurar
fora de si o equilíbrio, se
acaso lhe falta?...
|
||
Por um momento, identificou-se
com o esforço alheio...
Como provam as manhãs de
segunda,
é necessário dar alento ao
movimento...
Viver por demais no casulo
torna sem cores
até a mais bela das borboletas...
|
||
Dando voltas à vista, acha
de volta o caminho da rua,
|
||
atravessa até a esquina da Capitão Salomão e
entra no Centro Médico. Não resiste
às terapêuticas lojas
da galeria:
|
|
avança quase um
quarteirão, chega perto da 19 de Fevereiro. Encontra a banca de jornal
repleta de notícias:
|
sente que lhe falta
substância...
Balança a cabeça,
indiferente.
Afinal, que lhe importam mais
alguns problemas?..
Não seria melhor empurrá-los
para a frente
até que um dia morramos
todos?...
Sua pureza tem se perdido
nos enganos da história...
E também a fé!
Sabe ser emaranhada a
estrutura que a presença
e a notícia dos demais
preenche...
Colagem da existência contemporânea,
não há quem lhe garanta a
integridade.
Dada a dimensão da perda
coletiva, era até pouco o que lhe faltava...
Mas, como faltava!
Contar (ou ao menos sonhar)
com o mais, seja isso o que for, preenche, um pouco, o vão...
É tanto o que está fora, à
espera da posse...
Decide o óbvio, o certo.
Porque comprar qualquer
coisa só por comprar,
só aumenta o tamanho do
fosso.
|
||
De novo na rua, passando o ponto de ônibus, a
calçada
se torna estreita.
Vê à sua direita, vestindo amarelo,
a antiga elegância do desusado casarão,
cercado de jardins,
|
|
Subindo a rua, após
a lanchonete, encontra o hospital de bonecas
e a pizzaria.
Vê à sua frente
bancos, todos
completamente entulhados de dinheiro,
|
ah!, só assim se aproxima
da inalcançável solidez das
riquezas...
|
||
Ali dentro, só pode mesmo
haver um tesouro:
são muito férteis e fortes
as trancas e as grades.
Mais uma vez (e já é parte
da história...)
fica de fora o desejo: é
esse o custo mais alto...
|
||
Chega à movimentada esquina
|
||
da Conde de Irajá, onde restaurantes e botequins
se abrem.
Ela lembra de caldo verde bebidas,
e música.
A roda de amigos,
a conversa fiada,
as manjadas paqueras
|
|
da Rua das
Palmeiras. Frente à loja de discos, a agência dos Correios, que tão bem
conhece.
Ele se lembra
das seguidas tentativas:
as cartas
formais,
as esperanças
postadas
|
e a falta de respostas
sinceras.
|
||
Então, é com certo ímpeto que
se joga à travessia da vida.
Procura fazer alguma presença, abre o peito
ao possível!
Lança mão dos meios lícitos
e se entrega à mão do destino.
Se há algo que prejudica o
resultado é a falta de concordância alheia...
Mas tem feito o melhor. O
pouco que tem feito é o melhor!
Assim mesmo o tempo passa
por cima dos sonhos.
|
||
Ela passa a esquina
do estacionamento.
Vê os carros estacionados, torrando
|
|
Ele passa a
esquina
da São João
Batista.
Vê, além do
portal
do cemitério,
túmulos
|
inertes ao sol e lhe vem uma
solidária sensação de cumplicidade.
São tantas as vias sutis do
desalento...
Há no corpo humores, mas lhe
falta constâncias...
Procura manter o prumo entre
transeuntes e carros:
certas crenças exigem
postura...
Lamentavelmente, varia, de
ponto e de prazo,
a firmeza da busca...
Às vezes parece interminável
o vazio do exílio.
Será que os fartos não lhe
abrirão mais as portas?...
Abandona por tempos a busca,
desnorteia-se...
Nem sempre se está
atento nem safo...
Nem sabe mais que
forças sustentam o esforço...
Mas é fato que logo,
de pronto, se apruma de novo!
A tendência a parar
também pode tender a parar...
|
||
Súbito, enquanto a
mente elabora desvios,
acha-se diante da
entrada da
|
||
livraria Dazibao.
Admira a profusão
das obras expostas,
mas não estranha, embora lamente
que não lhe deem suporte.
Tem lhe faltado
|
|
Igreja da Matriz.
Respeita a
imponência de obras de porte,
mas não entende,
embora prefira,
o porquê de estar
sempre de fora.
Tem lhe faltado
|
um manual das artes
dos relacionamentos.
|
|
vaga na
construção
de seu tempo.
|
Entende que é grande o
manancial, o acúmulo de sabedoria.
É esse excesso que lhe tolhe
o acesso.
Não sabe pinçar aquilo de
útil em meio a
convicções tão profundas,
estáveis...
A grandeza das conquistas
alheias não lhe serve de apoio,
nem sequer de estímulo...
Aumenta, aliás, a distância.
O que lhe tem sido difícil
está todo na mão dos demais...
E, no entanto, há uma
fartura de ofertas no mundo,
muito mais do que vê
|
||
na sapataria,
|
|
no supermercado,
|
do outro lado da
Voluntários.
|
||
Ela sempre sonhou
fazer conquistas,
tão facilmente quanto comprava sapatos.Bastava um
modelo moderno e mais
um mínimo de recursos
|
|
Ele sempre
quisera
garantir
domínios,
tão simplesmente
como comprava comida.Bastava um preço razoável e mais
um mínimo de
qualidade
|
desde que tivesse bom
gosto...
Era exatamente isso, afinal,
que lhe faltava:
a garantia da cotidiana
oferta de meios,
o sortimento de haveres, o
provimento de bens.
Não, não esperava
garantias...
Ansiava, simplesmente,
pela certeza das
disponibilidades.
Ao menos, agora, a caminhada
lhe exercitava a firmeza,
talvez pudesse lhe dar mais
ânimo aos sonhos.
Na esperança da real
grandeza da sorte,
chegou à Real Grandeza.
|
||
Ela encontrou
aberto o sinal.
|
|
Ele atravessou
o posto de
gasolina.
|
Perfilados,
diante dela,
veículos atentos,
|
|
Animado,
abastecido
de novas
energias,
|
chegou à ampla calçada da
farmácia, território de vendedores de cartões telefônicos, passadores de
filipetas promocionais,
indiferentes sustentadores
de faixas
de uma alheia propaganda
eleitoral...
Parada estratégica: hora de
repensar movimentos,
de observar o pulsar das
pessoas.
Olhando pra cima podia ver,
indeciso, o Cristo,
braços abertos, cabeça nas
nuvens...
|
Ela iniciou um bailado indeciso:
"qual é mesmo
o caminho?",
|
|
Ele procurou com
urgência a informação: "qual é mesmo
a hora?",
|
perguntou...
Sim, a boa dança é feita aos
pares!
A troca dos passos demonstra
o sucesso da festa.
O jogo de olhares, os
comentários gerais,
a escrita do corpo, tudo é
ciência!
|
||
Sem mais, de nada, quem sabe
não surge,
num ato, um novo
espetáculo?...
Na dúvida, falaram-se...
|
||
Ela considera a ideia da água de coco
|
|
Ele se interessa
por tomar um café
|
do outro lado da rua, na
diagonal, no boteco (ou Bar Restaurante?).
Ter sede é, sempre, sinal de
consciência.
Por meio dos líquidos se
retém o concreto.
A conversa escorre solvente,
penetrando motivos e causas...
|
||
Ela comenta, é só.
Que anda
esperando alguém,
um companheiro
|
|
Ele reclama de
grana.
Que anda
batalhando algum,
que um emprego
|
seria bem vindo.
Diz que não é fácil a
incompletude,
a insatisfação no gesto, o
olhar falido.
O que ameniza é que, ao
menos, tem
|
||
uns trabalhos avulsos, cumpre umas bobas tarefas,
fatura, assim, algum
|
|
umas aventuras
avulsas, namora uma velha colega,
fatura ainda
algumas
|
por fora.
Sente que exagera na
sinceridade,
coisa nem sempre saudável,
sequer promissora...
Se fala tanto é por graça, a
fala adoça-lhe a boca...
Só fica azeda se passa pelo
ouvido dos outros.
Percebe que é hora de mudar de
ambiente.
Na outra quina da esquina, a
padaria Imperial é
|
||
seguro pra ela.
Ele não parece
bastante cavalheiro,
não inspira confiança
de afeto...
Ela só quer um amor...
|
|
melhor para ele.
Ela não parece
dispor de
qualquer indicação ou sugestão
de serviço...
Ele só quer um lugar...
|
O assunto se torna
apático.
|
||
A fala se passa da boca pra
fora.
De tudo se fala, de bolos e
doces, presuntos e queijos,
espelhos e lustres, menos de
si...
|
||
"Dou uma força",
ela estimula, sincera.
Convicta,
|
|
"Foi um
prazer", ele confirma, simpático.
Resoluto,
|
parte.
O caminho é sempre um
refúgio:
não sente as dores
nem sabe das horas...
Só, um tanto à frente,
reconsidera:
|
||
"Se ele tivesse
|
|
"Se ela
fizesse
|
um trato..."
Mas, a dúvida
(não se pode viver com
ela...),
|
||
desta vez, ainda bem, dura
pouco:
trata logo de esquecer...
É que agora
(e a tarde passa, a vida
passa também)
é tarde...
|
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