quarta-feira, 15 de julho de 2015

O Mistério da Serzedelo





“Bairro eclético, o nosso. Há pedintes de todas as idades, nacionalidades e faixas sociais.” 
João Antonio
inÔ, Copacabana!”, Cosac & Naify, 2001, pág. 35.




A bicada de fundo de copo

“Na tarde alegre, barulhenta e muito quente da homenagem a João Antonio, estávamos o Aguinaldo Araújo Ramos (...) e eu, conversando fora do bar, com nossos copos praticamente vazios nas mãos; foi quando saiu do Cevada uma mulher mais ou menos entrada em anos, em traje de praia discretamente envolto por uma 'canga' de bom gosto, aparentando ser de classe média, que traçou uma decidida reta em direção ao Guina e, sem mais, perguntou a ele se poderia beber os dois dedos restantes do chope escuro de seu copo... Ante a surpresa e hesitação do amigo, tomou-lhe o copo das mãos, bebeu e ofereceu-se para levá-lo de volta ao interior do bar. E foi o que fez num sentido inverso da reta inicial. Segundos depois, saiu do bar e, numa diagonal em direção à Siqueira Campos, sumiu de nossas vistas antes mesmo que pudéssemos esboçar um julgamento ou comentário.

Lá se ia uma autêntica personagem de João Antonio.”

Jacy de Castro,

e-mail, 31/01/2007.


          João Antonio estava presente. Aliás, fazia aniversário, 70 anos: ah, não ia faltar mesmo!...
“Disseram que ele não vinha: olha ele aí!”, alguém teria cantado... É, até disseram que tinha ido de vez, que passara (a contragosto!) dessa para uma duvidosa melhor... Sim, porque não há nada melhor, aqui ou noutras dimensões, que umas cervejas num boteco de esquina de Copacabana. Ele sabia (sabe!...) disso muito bem.
          Estávamos lá, numa conversa esquisita, eu e Jacy, amigona do João, ela que há muito tempo não via o quase compadre, um quase irmão (nunca namorado, fez questão de esclarecer...), ela que, aliás, fingia que não, mas bem que sabia que ele estava por ali... Era aniversário do cara, sábado à tarde, um monte de gente comemorando no Bar Cevada, praça Serzedelo Correa, pertinho de onde morava: ah, ele tinha que estar por ali, em algum lugar!...
          Ela contava grandes momentos dessa amizade inesperada. De saída, como ele se convidou a experimentar o cuscuz paulista dela. O que, dito assim, pode ser mal interpretado, mas é literal: faz lembrar o estilo dele, mais para mal humorado e sarcástico do que para meramente irônico... E de como, depois, não a largou mais, de vez em quando pegando umas caronas, às vezes tirando umas casquinhas, sempre na maior camaradagem, apesar de um inexplicado sentido de urgência e necessidade a lhe agitar.
          Estacionamos na calçada da praça em frente ao bar, eu um tanto apalermado, mais ouvindo que falando, uma tulipa com um restinho (uns três dedos) de chope preto na mão, e a Jacy recriando as artimanhas de João Antonio (que, concluímos, sempre teve a si próprio como personagem, rascante e conturbado para o público, organizado e metódico nas internas), justo quando desponta do nada, como se viesse do Cevada, a tal figura que Jacy descreveu bem, uma mulher de certo porte e atitude.
O mais importante: o olhar. Portava um olhar incisivo que atravessava ruas e pessoas, quase fura o pneu de um táxi... Pantanoso, porém, para quem pensasse entrar nessa repentina mente. Um olhar para fora... Veio direto nos meus olhos e mais do que pediu:
- Posso tomar este último gole?, a mão já avançada...
          Perdi, pensei, acostumado aos novos tempos... Certo, muito justo, mas... É que perder incomoda... Assim, sem nenhuma contrapartida?...  Ah, não!...
Fui mesquinho:
          - Pode tomar. Mas, depois... Você se incomoda de entregar o copo no balcão?...
          Topou, que há justiça em tais relações, mesmo repentinas. Tomei um gole (mínimo, não queria que ficasse nervosa...), que quase vira vitória. Que nada: virou de primeira os dois dedos restantes, virou-me as costas (hum, jeitosas...) e lá foi se virar pelo balcão, que eu retornei de primeira o saudoso papo de Jacy.

Bar de Copacabana, 1989
          Você viu que viu coisa diferente, não é, Jacy?... São versões, admito. A que vale é a minha, mas, tá bom, você tem lá os seus direitos... Ora, não importa!... Acontece que, aí, Jacy, quem perdeu foi você... 
          Não se incomode, é assim mesmo, faz parte do Mistério. No caso, o de Copacabana, da Serzedelo... Quem sabe disso muito bem é o próprio João Antonio, é só ler. Ah, você não chegou a ver a peça por ali, não, né?...
          Eu vi, Jacy, você não viu... A morena não saiu sozinha não, Jacy. E nem deu qualquer outro bote no copo alheio... Saiu com ele, Jacy. Percebi o vulto, a figura malemolente, o figuraça cambiante, o figurão flexível, o mistério que foi tomando conta do braço dela, gesto meio paternal, meio possessivo, o artista que foi logo puxando um papo ao pé do ouvido, não sei se uma cantada, talvez uma introdução para pesquisa mais profunda, qualquer coisa que não sei se levaria adiante na sequência dos acontecimentos...
Saíram juntos, Jacy. Para quem olhava do ponto de vista de quem mantém no coração uma saudade, podia parecer que ela ia sozinha, Jacy, mais uma mulher solitária em Copacabana, são tantas... Mas eu, que ando incrédulo mas crente, Jacy, vi (ninguém, nem eu, pode dizer que não...) com estes olhos que já viu muito mais do que comeu.
Viu-se (sim, alguém mais terá visto, deve haver testemunhas) que João Antonio, aquele malandro amigo, amigo seu, amigo do povo, amigo de Copacabana, de suas figuras felizardas e das muitas desamparadas, aquele que (eu sei que você percebeu...) estava o tempo todo por ali, no boteco, na praça, na rua, comemorando porque nós estávamos comemorando seus 70 anos de uma vida já um tanto imortal, ah, Jacy, a essa altura, a essa hora, nesse tempo, fosse por conta da morena que se foi, fosse pela vida vivida que se vai, ah, Jacy, de alguma maneira, tenho que admitir, Jacy: João Antonio estava lá.
Mas, na verdade (você está certa, você tinha razão, Jacy!...), João Antonio não estava mais ali, aqui, no mundo.
Bem...
É...
Copacabana, Rio de Janeiro: serve?...

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