Rio de
Fevereiro
O Carnaval da Gente
O
ano começou chuvoso, acinzentado, no tom da alma do povo brasileiro...
Juraci,
52 anos, moradora de Benfica, tinha tido, entre o Natal e o Ano Novo, uns
achaques. Devia ser por causa das comidas gordurosas, das festas na casa das
patroas...
Zé
Inácio, 56 anos, morador da favela da Vila Vintém, andava meio borocoxô. Até o
reumatismo tinha voltado a atacar, atrapalhando seu trabalho na oficina...
A
coisa vinha desse jeito desde o ano anterior, oscilando entre o catastrófico e
o deprimente, especialmente no que se refere a assuntos financeiros e outras
necessidades habituais. Fato é que a mudança de um mero algarismo na datação
dos tempos não provocou a mínima valorização do numerário...
Não
que Zé Inácio estivesse tecnicamente duro... Tinha crédito na praça. Estavam
lhe devendo algum, por uns biscates de marceneiro. Porém, devido às festas de
fim de ano, quase ninguém pagava...
Até
que Juraci achava as patroas “tudo gente fina”... Fazia faxina em três
apartamentos, um no Flamengo, dois em Botafogo. Se deixaram de pagar esta
semana, só podia ser pelas despesas de fim do ano...
Depois
de uma tempestade cambial arrasadora, o tempo se manteve pesado... Cor de
chumbo grosso, como se aquela nuvenzinha escura e relampejante das histórias em
quadrinhos assumisse proporções monumentais e coletivas, quase o peso de uma
bigorna sobre as cabeças de pobres coitados em geral. Enquanto isso, acima de
todas elas, muito leve, o dinheiro subia, fugia, sumia...
Zé
Inácio se achava numa fase meio azarada. Tinha deixado cair um enxó, que
empenou. E as gengivas voltaram a se inflamar, parece que ia perder outro
dente... Sabia que ia ter uns gastos extras.
Duas
das patroas de Juraci, sem mais nem menos, dispensaram seus serviços. Uma
perdeu o emprego, a outra ia passar uns tempos na serra. Sentiu logo que ia ter
que apertar ainda mais o cinto...
Se
a situação econômica era essa, não ficava só na cúpula. Era tal o peso, que se
espalhava por todas as áreas ordinárias da vida. Ficava difícil aturar o colega
de trabalho... A televisão nunca tinha nada de bom pra ver... O pãozinho da
padaria ficava cada vez menor... O vizinho aumentava sua capacidade de ser
chato... Enfim, todas estas tragédias cotidianas se multiplicaram, nesse início
de ano, a níveis irritantes. Tudo isso em pleno verão, mais de 40o...
A
cachola de Zé Inácio quase derretia, enquanto preparava as formas para o
alicerce de uma casa da Vila da Penha que ajudava a construir, bico de pedreiro
arranjado por um amigo: "pô, o calor tá aumentando a cada ano ou é
impressão minha?"...
O
calor do caldeirão passava dos cem graus... Juraci conseguiu, numa fábrica
clandestina de sorvetes em Inhaúma, uma vaga de, digamos, cozinheira. O que a
levou a largar a faxina que restava, no Flamengo. Suando, se abanando, repetia:
"tô derretendo!"
De
repente, já se adentrava o ano... Que parecia propenso a dar chabu, depois de
um reveillón muito menos fantástico do que alardeava o Fantástico, o que
contribuiu ainda mais para a pasmaceira geral... É que faltou “aquela” emoção:
aviões caindo por aí, golpes de estado sanguinolentos, mísseis
intercontinentais disparados lá pra casa, qualquer coisa!... Aí então, quando o
cinza voltava a invadir a paisagem, foi que veio o Carnaval!... Que sempre foi,
nessa terra, uma solução pra lá de geral...
Um
conhecido deu-lhe um toque e Zé Inácio foi trabalhar na quadra da Imperatriz
Leopoldinense, em Ramos. Fazia assoalhos de madeira para carros alegóricos e
estruturas de alegorias. Maior sorte!... Era sua escola preferida. Desde
criança, quando ainda morava no IAPC de Olaria...
Juraci,
não aguentando mais o cheiro da falsa calda de caramelo, correu atrás... Graças
a uma amiga bordadeira, entrou no grupo de costureiras de fantasias das alas
das baianas e da comunidade, no barracão do Cais do Porto. Logo na Imperatriz,
sua escola preferida, de coração!...
O
Carnaval chegou dando espetáculo!... Foi como se em meio à escuridão do teatro,
diante da plateia entupida de gente desanimada, gente endividada até os
pensamentos, se abrissem as cortinas de um palco feliz e iluminado, assim como
um prêmio milionário...
Zé
Inácio gostou daquele mundo... Suburbano de nascença e, no entanto, nunca tinha
se enfronhado nos bastidores do Carnaval... Agora via seu trabalho coroado de
brilhos, de luzes e de cores. De repente, em cada prego que batia, havia uma
outra alegria!...
Juraci
se envolveu nos brocados e bordados. Em pouco, estava rodeada de saias rodadas,
em conturbadas escolhas de turbantes, em intermináveis provações de medidas...
Adorou!... Agora, cada ponto que dava, com alegria, era mais um nó que a
prendia...
A
coisa era mesmo um espetáculo!... Um palco repleto de pernas de coristas (que
no Carnaval tem outro nome, como é mesmo?... Destaques, rainhas da bateria, globelezas!...),
à frente de um cenário triunfal (carros alegóricos, passarelas!...), ao som de
uma orquestra superafinada (bateria nota 10!...), com uma coreografia cada vez
mais sofisticada (comissão de frente, alas ensaiadas!...), tendo ao centro um pas-de-deux
emocionante (mestre-sala e porta-bandeira!...) e, ao fundo (e na base...), um
ensandecido bando de coadjuvantes (velhas baianas, membros da comunidade,
turistas fantasiados!...), um show, uma parada!
Faltavam
duas semanas: loucura organizada no barracão!... Juraci já era, nessa altura,
chefe das arrematadeiras. Cada vez tinha mais importância no arremate de
fantasias dos retardatários. Praticamente virava redondo no trabalho... Tava
que tava!... Feliz...
Dada a
dedicação do marceneiro e preocupado com a proximidade do desfile, o chefe
tomou uma atitude abusada: mandou Zé Inácio pro barracão do Cais do Porto. Ia
ajudar nos acabamentos das alegorias de mão e outros penduricalhos. E ele foi
que foi!... Feliz...
E
em pouco tempo a plateia, cada vez mais escolada, invadia o palco espalhado no
país, reunida em blocos, em maracatus, em cordões, e muitos saíam atrás do trio
elétrico (só morrendo pra não ir...), subindo e descendo ladeiras, vestindo
roupa de palhaço ou de índios falsificado... E, com um consenso realmente
democrático, de um dia para outro não se distinguia mais o palco da plateia,
nem o teatro da rua. Nem, sequer, a dureza da alegria...
Foi
lá que se conheceram Zé Inácio e Juraci. Mas, cada um, ainda, do seu lado do
tapume... Ela, na confecção das fantasias; ele, na montagem dos adereços.
Trabalhando juntos, porque o produto era um mesmo sonho, um sonho só: o
campeonato. Pois, foi o que criou o molejo e o embalo, o suficiente e o
necessário, para as conversas na contramão do corredor, os esbarrões na fila do
café, os troca-trocas de opinião sobre o enredo, os ensaios particulares do
samba ainda mal decorado... Não podia dar errado!...
De
tal modo alguma transubstanciação é necessária, que, por uns dias, o Brasil e o
Carnaval se misturaram!... Trabalhoso, complicado, confuso, mas alegre, bonito,
entusiasmante: um carnaval de país!... Abrindo alas a uma forma de paz social e
econômica muito raramente alcançada... Um outro lado festivo dos problemas,
abrangente, animador... Até mesmo para quem acha que o Brasil é uma espécie de
Carnaval-o-tempo-todo, que não tem jeito, que está acabado...
Assim
começou o chamego, meio sem graça... O primeiro beijo, aquele sufoco!... Todo
mundo de encarnação, na folguinha do expediente, altas horas, em um bar do
Santo Cristo. Só saiu depois de uns gorós e de um corinho animado: beija,
beija!... No momento, ficou nisso, sem maiores resultados... A prioridade, para
os dois, era uma só: a escola desfilando emproada na avenida. Uma escola bem
talhada, arrebentando de alegria a madrugada...
Enquanto
isso, no teatro dos acontecimentos, povo e elite, como é de praxe, se
afastavam. Uns, nos blocos de sujos, amarrotados; outros, nos desfiles de
fantasias de luxo...
Zé
Inácio e Juraci cumpriram seus mandatos, tinham tudo arranjado... Era hora de
estrear na passarela. Hora de mostrar o rebolado, essa arte que a vida
ensinara... Porque, se era para dar uma força, valia logo dar dobrado!
Saíram
numa ala da comunidade, com uma fantasia simplizinha, logo atrás do abre-alas.
Cada um cumprindo seu papel diante de um Sambódromo lotado, pela primeira vez
tendo a visão do outro lado. Com entusiasmo, mesmo que faltasse samba no pé,
que isso é coisa pra quem é mais chegado...
Pois
é, o Carnaval... Se foi democrático na abrangência, não passou de caricato na
expressão... Gente pulando de norte a sul, o pobre vestido de rei, o rico
sambando no asfalto, e, afinal, tudo isso não resultou em nada!... Mais uma vez
não passou de uma fantasia, que dura até quarta-feira de cinzas, mas dói, pra
danar, o ano inteiro...
Acabado
o Carnaval, o mundo e o país viram a cortina se fechar, cada grupo de novo do
seu lado. A apatetada plateia catando seus farrapos, os do palco retornando a
seus banquetes... Todos, de novo, à vida!... Que, para ela, pouco importam as
injustiças sociais e muito menos as discutíveis decisões dos tais
jurados...
Juraci
e Zé Inácio chegaram no bagaço do outro lado, em plena Apoteose. Atravessaram a
imensidão da pista sem ver nada, as luzes, em cheio, nos seus olhos. O som da
bateria é que trouxe os corpos suados, parecia que tinham voado... Agora,
olhavam espantados, de mãos dadas, na escada do Museu do Carnaval, a festa que
(não é nada, não é nada...) também construíram.
Mas,
não ganharam... Por um ponto (que Juraci poderia ter costurado ou, fosse um
prego, Zé Inácio pregado...), a Imperatriz perdeu o campeonato.
Ah,
mas que as energias são outras (há até um ano recém-começado), que ainda
brilham muitas luzes, e que, diante da amostra, é possível acreditar que tudo
não só se resolva como se resolva em festa, ah, isso é verdade!...
Descolaram
um cafofo no Morro do Adeus, perto de Bonsucesso, que é pra não ficar muito longe
da sede da escola e juntaram os trapinhos. Sem filhos pra criar, qualquer
mixaria segura o rojão... A rapaziada da escola fez um chá de panela caprichado
(só valia presente de 1,99 pra ninguém ficar de fora) e com isso resolveram o
problema do enxoval. Aí, foi só descolar com a diretoria uns móveis usados. O
fogão saiu de uma rifa. Vendida, rapidinho, na quadra da escola, na festa de
desagravo do segundo lugar. Até o carnavalesco, num daqueles seus rompantes
engraçados, arrastou para a casa deles uma geladeira. Um pouco usada, mas foi
só trocar o gás e estava consertada!...
Quem
sabe, de repente, não vem, por aí, um Carnaval fora de hora?... Um, que dure o
ano inteiro, que distribua alegria (mais que fantasia) para todo o povo
brasileiro.
Para
Juraci e Zé Inácio, agora, bastava conseguir trabalho...