terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Rio de Desejo: Desengano

Rio de Desejo

Desengano


   - E aí, tudo bem? 
   - Olá!... Tudo bem...
   Ela pergunta primeiro, no reencontro casual. Na lembrança dele, aquela mancha, a calça molhada...  Um Carnaval muito antigo, Av. Rio Branco, segundo grupo...
   Grandes, os seus olhos. Os seios, relativamente menores. O rosto maravilhado, de quem aproveitava para saborear, enquanto descobria, os prazeres do mundo. A boca sempre úmida, os lábios carnosos... Lábios e olhos penetrantes, os seios amortecentes. O desejo, mais que visível, tocável, oferecido mesmo... Mas não tocante, desagradável até... No Carnaval da Rio Branco, para ele, com umas cervejas a mais, normal. Não lhe seria insensível...
O encontro
   Entre os desfiles, num intervalo necessário qualquer, se encontraram. Os dois a trabalho: ele, julgando alegorias; ela, fiscal do Juizado. Conhecidos do Fórum, haviam trocado cumprimentos nas rampas, uma prosa qualquer no corredor. Sempre se olhando de alto a baixo, de fora para dentro, como que se lambendo... Então, no calor da noite, no ritmo carnal das ruas, o encontro. A cidade com seus becos, suas travessas, era só se meter por ela...
   Na quina de um prédio eles se agarram, se esfregam, se conhecem por bocas e mãos. Aquela mulher toda, o tesão dele se desenfreando... Pena que ela estivesse de jeans: aumentava a fricção, mas dificultava o acesso. E pena que ele fosse quem era... 
   Na Avenida, vem se formando o desfile do bloco. Na quina do prédio, ele vai se desmanchando em gozo. Para ela, dedos sem jeito no pano apertado, nada que fosse o bastante, ele não conseguiu boa nota no quesito...
   Não se viram mais, difícil dizer quem não quis...
   Até esta tarde, numa Vara Cível, vinte, trinta anos depois...
   Ela, enxuta, contida, com, no fundo, a mesma volúpia. Agora, dentro de um vestido leve... 
   - E você, como está?...
   Ele, talvez ansioso, talvez confuso, se escolhe sincero. Respira fundo, ao fundo a própria história, e, evadindo-se, assume:
   - Continuo o mesmo...

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Rio de Fevereiro: O Carnaval da Gente




Rio de Fevereiro
O Carnaval da Gente
O ano começou chuvoso, acinzentado, no tom da alma do povo brasileiro... 
Juraci, 52 anos, moradora de Benfica, tinha tido, entre o Natal e o Ano Novo, uns achaques. Devia ser por causa das comidas gordurosas, das festas na casa das patroas...
Zé Inácio, 56 anos, morador da favela da Vila Vintém, andava meio borocoxô. Até o reumatismo tinha voltado a atacar, atrapalhando seu trabalho na oficina...

A coisa vinha desse jeito desde o ano anterior, oscilando entre o catastrófico e o deprimente, especialmente no que se refere a assuntos financeiros e outras necessidades habituais. Fato é que a mudança de um mero algarismo na datação dos tempos não provocou a mínima valorização do numerário...
Não que Zé Inácio estivesse tecnicamente duro... Tinha crédito na praça. Estavam lhe devendo algum, por uns biscates de marceneiro. Porém, devido às festas de fim de ano, quase ninguém pagava...
Até que Juraci achava as patroas “tudo gente fina”... Fazia faxina em três apartamentos, um no Flamengo, dois em Botafogo. Se deixaram de pagar esta semana, só podia ser pelas despesas de fim do ano...

Depois de uma tempestade cambial arrasadora, o tempo se manteve pesado... Cor de chumbo grosso, como se aquela nuvenzinha escura e relampejante das histórias em quadrinhos assumisse proporções monumentais e coletivas, quase o peso de uma bigorna sobre as cabeças de pobres coitados em geral. Enquanto isso, acima de todas elas, muito leve, o dinheiro subia, fugia, sumia... 
Zé Inácio se achava numa fase meio azarada. Tinha deixado cair um enxó, que empenou. E as gengivas voltaram a se inflamar, parece que ia perder outro dente... Sabia que ia ter uns gastos extras.
Duas das patroas de Juraci, sem mais nem menos, dispensaram seus serviços. Uma perdeu o emprego, a outra ia passar uns tempos na serra. Sentiu logo que ia ter que apertar ainda mais o cinto...

Se a situação econômica era essa, não ficava só na cúpula. Era tal o peso, que se espalhava por todas as áreas ordinárias da vida. Ficava difícil aturar o colega de trabalho... A televisão nunca tinha nada de bom pra ver... O pãozinho da padaria ficava cada vez menor... O vizinho aumentava sua capacidade de ser chato... Enfim, todas estas tragédias cotidianas se multiplicaram, nesse início de ano, a níveis irritantes. Tudo isso em pleno verão, mais de 40o... 
 
A cachola de Zé Inácio quase derretia, enquanto preparava as formas para o alicerce de uma casa da Vila da Penha que ajudava a construir, bico de pedreiro arranjado por um amigo: "pô, o calor tá aumentando a cada ano ou é impressão minha?"...
O calor do caldeirão passava dos cem graus... Juraci conseguiu, numa fábrica clandestina de sorvetes em Inhaúma, uma vaga de, digamos, cozinheira. O que a levou a largar a faxina que restava, no Flamengo. Suando, se abanando, repetia: "tô derretendo!"

De repente, já se adentrava o ano... Que parecia propenso a dar chabu, depois de um reveillón muito menos fantástico do que alardeava o Fantástico, o que contribuiu ainda mais para a pasmaceira geral... É que faltou “aquela” emoção: aviões caindo por aí, golpes de estado sanguinolentos, mísseis intercontinentais disparados lá pra casa, qualquer coisa!... Aí então, quando o cinza voltava a invadir a paisagem, foi que veio o Carnaval!... Que sempre foi, nessa terra, uma solução pra lá de geral...
Um conhecido deu-lhe um toque e Zé Inácio foi trabalhar na quadra da Imperatriz Leopoldinense, em Ramos. Fazia assoalhos de madeira para carros alegóricos e estruturas de alegorias. Maior sorte!... Era sua escola preferida. Desde criança, quando ainda morava no IAPC de Olaria...  
Juraci, não aguentando mais o cheiro da falsa calda de caramelo, correu atrás... Graças a uma amiga bordadeira, entrou no grupo de costureiras de fantasias das alas das baianas e da comunidade, no barracão do Cais do Porto. Logo na Imperatriz, sua escola preferida, de coração!..


O Carnaval chegou dando espetáculo!... Foi como se em meio à escuridão do teatro, diante da plateia entupida de gente desanimada, gente endividada até os pensamentos, se abrissem as cortinas de um palco feliz e iluminado, assim como um prêmio milionário...
Zé Inácio gostou daquele mundo... Suburbano de nascença e, no entanto, nunca tinha se enfronhado nos bastidores do Carnaval... Agora via seu trabalho coroado de brilhos, de luzes e de cores. De repente, em cada prego que batia, havia uma outra alegria!...
Juraci se envolveu nos brocados e bordados. Em pouco, estava rodeada de saias rodadas, em conturbadas escolhas de turbantes, em intermináveis provações de medidas... Adorou!... Agora, cada ponto que dava, com alegria, era mais um nó que a prendia...

A coisa era mesmo um espetáculo!... Um palco repleto de pernas de coristas (que no Carnaval tem outro nome, como é mesmo?... Destaques, rainhas da bateria, globelezas!...), à frente de um cenário triunfal (carros alegóricos, passarelas!...), ao som de uma orquestra superafinada (bateria nota 10!...), com uma coreografia cada vez mais sofisticada (comissão de frente, alas ensaiadas!...), tendo ao centro um pas-de-deux emocionante (mestre-sala e porta-bandeira!...) e, ao fundo (e na base...), um ensandecido bando de coadjuvantes (velhas baianas, membros da comunidade, turistas fantasiados!...), um show, uma parada! 
Faltavam duas semanas: loucura organizada no barracão!... Juraci já era, nessa altura, chefe das arrematadeiras. Cada vez tinha mais importância no arremate de fantasias dos retardatários. Praticamente virava redondo no trabalho... Tava que tava!... Feliz... 
Dada a dedicação do marceneiro e preocupado com a proximidade do desfile, o chefe tomou uma atitude abusada: mandou Zé Inácio pro barracão do Cais do Porto. Ia ajudar nos acabamentos das alegorias de mão e outros penduricalhos. E ele foi que foi!... Feliz... 

E em pouco tempo a plateia, cada vez mais escolada, invadia o palco espalhado no país, reunida em blocos, em maracatus, em cordões, e muitos saíam atrás do trio elétrico (só morrendo pra não ir...), subindo e descendo ladeiras, vestindo roupa de palhaço ou de índios falsificado... E, com um consenso realmente democrático, de um dia para outro não se distinguia mais o palco da plateia, nem o teatro da rua. Nem, sequer, a dureza da alegria...  
Foi lá que se conheceram Zé Inácio e Juraci. Mas, cada um, ainda, do seu lado do tapume... Ela, na confecção das fantasias; ele, na montagem dos adereços. Trabalhando juntos, porque o produto era um mesmo sonho, um sonho só: o campeonato. Pois, foi o que criou o molejo e o embalo, o suficiente e o necessário, para as conversas na contramão do corredor, os esbarrões na fila do café, os troca-trocas de opinião sobre o enredo, os ensaios particulares do samba ainda mal decorado... Não podia dar errado!...

De tal modo alguma transubstanciação é necessária, que, por uns dias, o Brasil e o Carnaval se misturaram!... Trabalhoso, complicado, confuso, mas alegre, bonito, entusiasmante: um carnaval de país!... Abrindo alas a uma forma de paz social e econômica muito raramente alcançada... Um outro lado festivo dos problemas, abrangente, animador... Até mesmo para quem acha que o Brasil é uma espécie de Carnaval-o-tempo-todo, que não tem jeito, que está acabado... 
Assim começou o chamego, meio sem graça... O primeiro beijo, aquele sufoco!... Todo mundo de encarnação, na folguinha do expediente, altas horas, em um bar do Santo Cristo. Só saiu depois de uns gorós e de um corinho animado: beija, beija!... No momento, ficou nisso, sem maiores resultados... A prioridade, para os dois, era uma só: a escola desfilando emproada na avenida. Uma escola bem talhada, arrebentando de alegria a madrugada...

Enquanto isso, no teatro dos acontecimentos, povo e elite, como é de praxe, se afastavam. Uns, nos blocos de sujos, amarrotados; outros, nos desfiles de fantasias de luxo...
Zé Inácio e Juraci cumpriram seus mandatos, tinham tudo arranjado... Era hora de estrear na passarela. Hora de mostrar o rebolado, essa arte que a vida ensinara... Porque, se era para dar uma força, valia logo dar dobrado!

Saíram numa ala da comunidade, com uma fantasia simplizinha, logo atrás do abre-alas. Cada um cumprindo seu papel diante de um Sambódromo lotado, pela primeira vez tendo a visão do outro lado. Com entusiasmo, mesmo que faltasse samba no pé, que isso é coisa pra quem é mais chegado...
Pois é, o Carnaval... Se foi democrático na abrangência, não passou de caricato na expressão... Gente pulando de norte a sul, o pobre vestido de rei, o rico sambando no asfalto, e, afinal, tudo isso não resultou em nada!... Mais uma vez não passou de uma fantasia, que dura até quarta-feira de cinzas, mas dói, pra danar, o ano inteiro...
Acabado o Carnaval, o mundo e o país viram a cortina se fechar, cada grupo de novo do seu lado. A apatetada plateia catando seus farrapos, os do palco retornando a seus banquetes... Todos, de novo, à vida!... Que, para ela, pouco importam as injustiças sociais e muito menos as discutíveis decisões dos tais jurados... 
Juraci e Zé Inácio chegaram no bagaço do outro lado, em plena Apoteose. Atravessaram a imensidão da pista sem ver nada, as luzes, em cheio, nos seus olhos. O som da bateria é que trouxe os corpos suados, parecia que tinham voado... Agora, olhavam espantados, de mãos dadas, na escada do Museu do Carnaval, a festa que (não é nada, não é nada...) também construíram.
Mas, não ganharam... Por um ponto (que Juraci poderia ter costurado ou, fosse um prego, Zé Inácio pregado...), a Imperatriz perdeu o campeonato.

Ah, mas que as energias são outras (há até um ano recém-começado), que ainda brilham muitas luzes, e que, diante da amostra, é possível acreditar que tudo não só se resolva como se resolva em festa, ah, isso é verdade!... 
Descolaram um cafofo no Morro do Adeus, perto de Bonsucesso, que é pra não ficar muito longe da sede da escola e juntaram os trapinhos. Sem filhos pra criar, qualquer mixaria segura o rojão... A rapaziada da escola fez um chá de panela caprichado (só valia presente de 1,99 pra ninguém ficar de fora) e com isso resolveram o problema do enxoval. Aí, foi só descolar com a diretoria uns móveis usados. O fogão saiu de uma rifa. Vendida, rapidinho, na quadra da escola, na festa de desagravo do segundo lugar. Até o carnavalesco, num daqueles seus rompantes engraçados, arrastou para a casa deles uma geladeira. Um pouco usada, mas foi só trocar o gás e estava consertada!...

Quem sabe, de repente, não vem, por aí, um Carnaval fora de hora?... Um, que dure o ano inteiro, que distribua alegria (mais que fantasia) para todo o povo brasileiro.
Para Juraci e Zé Inácio, agora, bastava conseguir trabalho...